RENASCITUDES

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Porta da Retina




Sobrou-me desenhada nas lembranças
a porta misteriosa pela qual jamais ousei...
Tão entreaberta às minhas andanças,
apenas um passo a frente que não dei.

 
Em tom castanho quase doce como mel
atraía despertando meu toque afetuoso
A noite, mais se parecia com um cinzel
esculpindo meu olhar desejoso.

 
Anos se passaram embaixo do mesmo teto...
Lá fora, tantas portas adentrei, nada vi
Preenchi espaços, de um EU incompleto,
saía como na inquietação de um colibri.

 
E a porta que sempre esteve entreaberta
fechou-se extenuante na eternidade.
Ela era apenas o seu olhar fazendo oferta:
Um convite a amar em profundidade.

 

Autoria: Ilka Vieira

terça-feira, 25 de junho de 2013

Oração dos Pássaros


Conservai-nos, Senhor,
a possibilidade de sermos
livres e inofensivos 
o direito de voarmos, 
cantarmos
e sermos felizes.

Ajudai-nos, Senhor,
na busca do alimento 
que nos permite a vida.

Mostrai-nos, Senhor, 
como nos defendermos 
do perigo, sem que 
precisemos perder 
a delicadeza
de sermos pássaros! 

Protegei-nos, Senhor!!!

Autoria: Ilka Vieira

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Lamento



Ah! eu me perdi nos teus cabelos
e me encontrei no teu sorriso.
Ouço a voz agressiva da morte que canta,
enquanto a madrugada prossegue.

Ouço a voz melíflua do cego romântico
e não tenho um piano para tocar
e não sei tocar também...

Palmilho com meus olhos o teu corpo
e minhas mãos se detém no caminho do gesto.
Era ternura, mas não entenderias...

Percorro a longa estrada do teu ser
e mergulho num sonho estranho,
enquanto a noite canta
e as palavras que fluem da pena
morrem estranguladas na garganta.

Ah! eu me perdi nos teus cabelos
e me encontrei na selva viva dos teus olhos
e era dia ainda.
Havia uma estranha luz crepuscular
no risco azul do teu sorriso,
mas não havia flores em tuas mãos
nem lágrimas no teu caminho.

Apenas o cego cantava romântico
e a morte entoava sua última canção.
Há uma verdade. Sabemos que há.
Mas não é importante.
Ou tão importante como o gesto detido,
como a ternura tolhida,
como o olhar profundo iluminado,
diverso e diferente.

Os loucos caminham pela noite.
Os cães ladram desesperados.
A morte canta.
O cego cala.

Quando o dia chegar, eu terei luz
e não precisarei dela,
terei o piano e não saberei tocar.
Terei palavras,
mas não conseguirei escrever.

Autoria: Ilka Vieira

quinta-feira, 21 de março de 2013

Irmã mais Velha



Quando nasci,
cinco delas já formavam a família,
que mais tarde totalizou sete filhas, 
uma locomotiva de consistentes vagões.

O lema era as mais novas 
obedecerem às mais velhas;
regulamento levado a sério,
desde os conselhos até os despautérios.

Os vagões, assim eu nos chamava,
descarrilavam de vez em quando,
mas a inspeção do carro-chefe era tão séria, 
trazendo-as de volta na suspensão das férias.

Com o tempo, papai e mamãe envelhecendo,
cada uma tomando o rumo da sua vida,
mas pra casar, divorciar...descarrilar
era preciso aconselhamento da mais antiga.

Levei desvantagem durante muitos anos:
a menor, que veio depois de mim,
chegou com atraso de dezenove anos, e
já não tinha mais graça pôr em prática os meus planos.

Fiz-me irmã mais velha em tempos modernos,
quando a conversa era mais descontraída e liberal.
A saia curta virou moda e o normal
era fazer da vida um vendaval.

Entendi que papai e mamãe 
iriam faltar muito em breve,
apressei-me em busca de colos diversos,
dos quais, até hoje, faço o meu universo.

São todas muito queridas.
Minhas seis irmãs reunidas
me dão luz, força e afeto,
estão sempre por perto.

A maturidade deixou de lado
essa coisa de idade,
fazendo da mais velha irmã
a radical capitã.

Hoje, nossos carros-chefes já partiram sem volta,
mas antes também se modernizaram, 
deixando-nos as mais doces lições
que se sobrepõem à razão:
o que aproxima a família é a voz do coração.

Autoria: Ilka Vieira